Sinceridade e livros.


Aprendeu a ser sincera. Mas não aquela sinceridade que se limita à apenas não dizer mentiras, mas a sinceridade que vai além da pureza. Não se tornou santa, muito menos uma pessoa melhor, porém o alívio que essa sinceridade proporcionava lhe causara o efeito inevitável de desejar a reciprocidade.
Reciprocidade é justamente o substantivo que não combina com o adjetivo sincero. O que esperar do outro que não aprendeu a sinceridade? Aquela que não se limita, logo aviso.

Essa sinceridade é mais do que palavras rasgadas ao outro, é deixar rasgar-se também; sentir a dor de magoar quando poderia facilmente omitir. É, a omissão também entra nesse ciclo de dores, não esconder e não mentir, optar pelo modo difícil, escolher cicatrizes além de flores e no final sentir a felicidade incontestável de ser o que realmente é.

Aprendeu e não recebeu a temida reciprocidade, detalhava seus dias e acontecidos com a veemência de quem reza à Deus. O medo de cada frase que transbordava de seus lábios era nítido, pois poderiam ser fatais, mas falava e falava e falava mesmo com o medo, mesmo com a sensação de haver dias infernais porquê estava sendo o mínimo que poderia ser: ela.

Virou-se e viu um livro novo na cabeceira do outro lado, estava sozinha e ler seria a melhor opção para uma aprendiz de literata, e ao abrir deparou-se com um nome na folha de rosto: Raquel Morais. Um descuido, uma opção, um nome. Três fatores arrasadores à recíproca não verdadeira.

Arrumou as malas, avisou que iria embora com a plenitude que só a decepção ensina, pediu pra esperar enquanto não chegava do trabalho, pediu pra não ir embora, acatou.
Guardou as malas num canto, acendeu um cigarro e escreveu.

Quem sabe um dia todas as suas pseudo-escrituras também estariam na cabeceira de alguém?


Um livro sem espaços em branco para não haver o nome de ninguém.

Vença.


Quer que o mundo se divida em três mundos, que o céu se transforme e que as estrelas a prendam nas nuvens. Quer virar anjo, mulher, criança, semente, qualquer coisa que a façam ver que a vida tem outro significado. Não sabe o que quer, não sabe. Quem sabe?

São trópicos que lutam entre si, o quente e o frio, o suor e o tremor, são duas vias de chão, caminhos distintos que levam para o mesmo lugar. Direita ou esquerda. Esquerda. É destra. O oposto de si. A outra mão que escreve seu Livro dos Dias.

Se fosse parar pra pensar seria uma vitória-régia. Meio nome vencedor. Meia vitória? O que rege a vitória? Vitória-régia. Vira anjo, vai dormir.


Vença.

Surdos.


Eu não sou suficiente. Não sou a mais bonita, não sou a mais legal, mais simpática, mais rrica, com mais contatos, eu simplesmente não sou suficiente. Não me sinto grande, não sinto que faço alguma diferença e definitivamente nunca fiz coisas importantes. Nunca fiz alguém chorar de verdade, todas as lágrimas eram de mentira. Até onde vivi uma mentira? Até quando vou escutar passos que não deveriam ser ouvidos?

Eu não sei dizer palavras bonitas, nem sei como fazer bem a alguém, talvez saiba fazer mal, mas se fiz mal foi de mentira como todas as outras coisas que não existiram. Se sorriu foi por educação. Se piscou foi cisco. Se deixou de amar, nunca amou. Aquela música nunca foi minha, os meus dias nunca foram como eu narrei. São invenções de uma mente insuficiente. Insuficiência de tudo, insuficiente de mim. Os passos ecoam, tapo os ouvidos, mas eles ainda estão aqui.

Se eu disse não era pra dizer. Se calei a boca era pra gritar. Falo demais, falo demais, nunca o suficiente, não sou suficiente. Não sou. Não sou. Pare de mentir, as malas estão sempre feitas, mesmo quando não se quer partir. O pior é ir aos poucos, o pior é ir indo, alternadamente. Mutilação diária. 

Eu ouço passos, eu ouço passos.

Eu não sou desse jeito que vê. Eu sou uma mentira, uma mentira mal-contada. Não sei mentir, não mais. Não tem mais brilho nos olhos, onde eles estão? Cadê? Não tenho olhos verdes e o monstro me persegue. Adivinha que não é o que eu quero, adivinha. Não fui esculpida. Não fui lapidada. Não sou arte. Nem rascunho. Sou página e ponto. Vermelho.

Insuficiente pra você.


Quem quer escutar o que não se quer ouvir?

Carta à Umabel.


Querido Umabel,

Esta é a última carta que escrevo a ti, uma carta cheia de lágrimas e sentimento. Se pudesse escolher não a escreveria, mas não posso. Decidiu-se. Por si só.

Éramos destruidores e hoje sou destruída, o destino pregou a peça da dor em mim e dói. E muito. O meu mundo veio por água abaixo e não quero admitir, mas o destino é coisa tão complicada que não adianta muito tentar entender. Pensei que eu te magoaria, com todas as minhas indecisões e devaneios, mas foi você que me magoou inúmeras vezes. Foi a mim que machucou a facadas, como se eu realmente nunca tivesse existido em mim. Sabe o quão paradoxo é isso?

Criou paradoxos em minha vida, criou o sentimento mais lindo do mundo, criou a dor mais mortal de todas, criou o nó na garganta, o passo apertado… Tu ainda és o artesão dos meus dias, pois ainda incide total presença neles dentro de mim. Você nunca me amou, fato; e eu me deixei cair em seus braços como criança que começa a andar, o que se faz verdade. Você me ensinou a andar pelos seus caminhos, pena que me fez voltar.

Nunca me amou, pois me descartou sem tentar, porque me deixou ir embora, porque existe alívio em seu coração. Saber que a minha falta te alivia me consome, não tens noção do que arrancou de mim. Meus sorrisos não são mais sinceros, minha vivacidade se tornou fosca, meu olhar não anda mais o mesmo e por quê? Por um destruidor. Fui destruída covardemente afundada em sonhos que nunca serão concretizados. Tentei.

Tentei ser o melhor por nós dois, tentei te fazer feliz, que nunca pudesse me esquecer e hoje estou morta pra ti. Estou morta pra mim também, o mundo mais belo existente virou pó, virou foto na carteira, virou música. Ouço a sua voz e choro, sem medo de admitir, porque ainda sinto. Sinto o amor que tenho por você escorrer pelos meus olhos todos os dias desde então.

Disseram que vai passar que vai virar coisa bela, que vou voltar a sorrir e vou sim, uma hora vou voltar a sorrir, mas não agora. Agora por onde passo lembro de ti e não sei de onde sinto seu cheiro. Isso sangra lentamente e a saudade corrói o que resta e já não resta muita coisa.

Eu amo você e isto não mudará, tudo que passamos juntos foi lindo e nessa beleza nos perdemos e não nos encontramos mais. A tristeza que fica é de dias tão belos que não voltarão. E nem eu voltarei, não mais, não sempre, não sua.

Quero lhe parabenizar por ter me destruído, logo a mim tão confiante. Ficarás marcado como meu destruidor, quem contornou a muralha que existia dentro de mim e hoje ela se reergue novamente involuntariamente.

A eternidade do amor, a eternidade da dor.

Da sua e pra sempre sua,


Larissa

Chuveiros, rosas de plástico e fotografias


O chuveiro me irrita. A água não esquenta o suficiente. Nos dias frios dá vontade de só trocar a calcinha, mas acabo entrando no chuveiro, a irritação me faz sentir viva. A luta travada todos os dias com um objeto, um maldito chuveiro que não esquenta. Às vezes ganho, nem sempre perco.

Há uma rosa de plástico em minha mesa, ela está lá há mais de um ano, uma rosa imortal. Todo mundo quer ser lembrado pra sempre, quer ser algo ou alguém, quer aquela sensação infinita de vivacidade. Algumas pessoas devem desejar apenas por um dia travar uma luta com o chuveiro, mas elas não assumem, estão sendo invejosamente felizes.

Todos os dias eu olho pra rosa e ela sem olhos revida o olhar. Rosas de plásticos não precisam de vasos, ela está ali jogada em um porta-caneta, entre um marca-texto e um pilôr.  Algumas vezes cismo que ela me pede água ou sol, ou que a tire dali. Só então percebo que condenei a rosa a viver os meus dias. O lugar dela não é ali. Acho que a rosa me rejeita.

De tanto conviver com quem não suporto nessa vida, desaprendi a tratar as pessoas que amo. Tenho seis fotos na minha mesa cinco delas são de pessoas com quem trabalho, cinco fotos de pessoas que não suporto mais ver. Mas há uma que foge a regra e é pra essa foto que olho quando a rosa me rejeita, nessas horas eu lembro que não sou o monstro que finjo ser.

Acho que vou rasgar todas as fotos e jogar a rosa de plástico no mar.


Pensei em consertar o chuveiro. Desisti.

Conveniências.

Nem tudo o que queremos tem o poder de durar pra sempre. Às vezes é preciso aceitar as derrotas e tudo aquilo que se foi. Os dias são outros e você não é mais o mesmo. O belo será belo na sua eternidade, mas não nesse mundo de minutos contados. Aqui será frio e solidão e ainda assim a solidão mais perfeita.

Seguir em frente evitando a tristeza, não olhar o que não deve ser visto, erguer a cabeça e os ombros; os outros te afetam a cada dia mais e mais e isso durará até que se prove todo o contrário. As vidas seriam mais bonitas unidas, mas não é pra ser belo, apenas conveniente.


E que assim seja.

É carnaval.


Veio sem querer. Do nada deu vontade de chorar, eu temi. Temi a mim mesma e toda aquela solidão que me corroia. Eu senti um frio na espinha, minhas mãos ficaram quentes e tudo o que eu queria era que passasse. Que tudo fosse deixado de lado. Não é pra pensar em infelicidade nessa hora, mas não dá. Não dá.

Não dá pra ignorar a solidão, há anos que eu não me escuto. E hoje, quando eu parei, vi que nada me restava a não ser montes de pedaços de mim. Não me pergunte quem sou. Por favor. Por favor. Por favor.

Sinto que vou estourar, explodir como um balão, porque estou sozinha. Sou eu e eu mesma e eu não gosto de mim. Não gosto do que me tornei ou de como as coisas andam aqui por dentro. Eu juro que eu quero chorar, mas não sai uma lágrima. Nenhuma.

A solidão é cruel, necessária, mas sua crueldade é maior que a sua necessidade.

Eu me odeio. A solidão que disse.


O que eu faço com os pedaços de mim?